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ATEMPORAL - WASHINGTON (USA)
22-03-1989
Existe um instante que passado, presente e futuro coincidem em um mesmo clichê de nossa frágil imaginação, dando-nos a sensação do Absurdo!
É o minuto do êxtase, sem barreiras, sem fronteiras. Está-se aqui, alhures e antes, em uma situação holográfica, diante de si mesmo, assistindo sua própria estória de vida.
Uma visão caleidoscópica, de simultaneidades fortuitas, sem contornos definidos mas, enfim, fantástica e intrigante! Como em uma holografia, saindo do plano para a tridimensionalidade ilusória.
Não existe sensação mais estremecedora do que assistir sua própria existência, como em um “reply-forward”, corporificada em um instante de delírio.
O corpo flui, a alma esvai-se em diversos tempos de um ser que, antes, fragmentado em sua linearidade e cronologicidade, volta-se completo, íntegro, inconsútil.
É o sentido holístico da natureza humana, sem eira nem beira.
Senti-me tal em Washington, desgarrado de minha rotina, apartado da representatividade, da quotidianidade, solto no universo do mundo, transladado a um espaço temporário.
Descobri, então, em um mercado de pulgas, velhos discos de várias gerações, com suas duras amarelecidas, velhos discos de várias gerações, desbotadas (“a pátina do tempo!”), na indignidade de um “sebo” pechincheiro.
Deambulei pelas estantes e caixas repletas de imagens, velhas trilhas sonoras, artistas démodés, outros consagrados, música clássica abandonada, ritmos superados, estrelas cadentes, astros ofuscados pela inexorabilidade do esquecimento.
Quantos fantasmas, quantos talentos olvidados, quantas vidas imantadas no acetato dos discos!
Quantas situações eles criaram e emolduraram nos Estados Unidos da América e pelo mundo, enlevaram, para tanta gente passada, superada, abandonada.
Aqueles discos foram, sem dúvida, a festa e a admiração de tantos seres anônimos, alguns já mortos, antes jovens e saltitantes, não menos outros taciturnos, graves e populares.
Muitos trouxeram-me recordações fugazes, fugidias, alguns desconhecidos, em 33, 45 e 78 rotações, à medida que iam apresentando e sumindo ao movimento dos meus dedos andarilhos nas prateleiras, pelas lombadas, no afã de encontrar alguma coisa que resgatasse um significado perdido, esquecido.
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Discogs
Deparei com um velho disco de Trini Lopez! Nunca fora um cantor de minha exclusiva simpatia, mas trouxe-o para o apartamento em que eu vivia lá em Washington. Coloquei o “earphone” e mergulhei em seu próprio tempo. Tempo de jovem andante, mochileiro, em busca de aventura.
“La Bamba”, “If I had a hammer”, “America”. Canções familiares daquele tempo de viver/morrer. Pensava estando em Montevidéu, tinha “meus” 23 anos, parecia bem menos por fora, e muito mais por dentro... Trini Lopez animava a festinha suburbana com alguns companheiros roqueiros. Como eu dançava! “Si yo tuviera un martillo”.
Fio mesmo em “Montevideo” (Uruguai), ou foi na Tijuca, no Rio de Janeiro, na minha casa da ladeira, com meus convidados imberbes, com toda aquela sensualidade juvenil, ardorosamente irresponsável, requebrando o corpo, febrilmente, superando a timidez com goles de gin? Pode ser. A memória não tem a precisão de um registro bibliográfico, tem a verdade furtiva de uma biografia em transição.
Que minutos reporta, que instante focaliza, que momentum recupera? O de ontem, o de agora , o de amanhã?
Um jovem invadiu o meu corpo maduro e dancei — sim, dancei! — alucinadamente, ao som brega de “If I had a hammer”, superando todos os ridículos, infinitamente feliz, na solidão apertada da sala, por uns minutos eternais, ponte entre o ontem e o sempre, uma trajetória densa e profundamente atemporal. Feliz, sem dúvida, feliz!
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